1.12.08

Sem remorsos.

- Roubou-lhe a vida. Roubou-lhe a vida aquele sacana.

Acendi mais um cigarro, enquanto anda em círculos a espezinhar as beatas de todos os cigarros que antes foram devorados como se fossem doces no Natal, e muitos se seguiram.

- E eu até cheguei a gostar dele entendes? Parecia-me uma boa pessoa.

Sentei-me num pedregulho com os cotovelos no joelho e a cabeça baixa a encostar no peito. Em penitência pelas minhas crenças, por ter sido levado a acreditar em aparências por deixar isto acontecer outra vez.

- Não acredito. Porra!
- É possível sermos tão estúpidos ao ponto de cometer os mesmos erros, quando estes ainda nos estão marcados na carne.

Olhei para as cicatrizes que tinha nos braços, cortes fundos na carne e mais dolorosos na alma, símbolos de violência e violação da sagrada infância das crianças. Se o sorriso feliz de uma criança é um tempo sagrado, que deve ser prezado acima de qualquer coisa, quando eu era miúdo, devo ter tido a pouca sorte de ver o meu templo sofrer um atentado terrorista.

- Apesar de tudo, de todos aqueles anos de merda, de tudo o que passei, fiquei feliz no momento em que a minha mãe se livrou do outro monstro.
- Esse momento deve ter sido um dos pontos altos da minha vida.

Não era fácil recordar todos aqueles momentos de dor, toda a violência sofrida dentro de quatro paredes isoladas do mundo. Penso sempre que nasci mudo, porque por muito que tivesse gritado nunca ninguém me ajudou, nunca ninguém se importou com aquilo que sofria.
Era patente a minha dor, quando ia para a escola, quando as pessoas olhavam, sabiam o que eu sofria mas nunca faziam nada. Todos tinham medo dele, e deitavam as culpas para cima dela. Para toda aquela gente ele era o senhor padre, e a minha mãe a sua cadela.

- Foram quinze anos. Quinze anos de sofrimento na mão daquele cabrão escolhido por Deus.

Olhei para o céu e recordei esses quinze anos de tortura, de dor, de doença, de viver na sombra debaixo da claridade dos olhares de todo o mundo. Nunca ninguém me amparou.

- Ainda me lembro da felicidade naquele dia.
- No dia em que me tornei carne e mente envolto por algo superior.

Não era vingança, não era raiva embebida em desespero, não era pela mão da justiça natural de tomei aqueles actos, foi por puro medo, sobrevivência.

- Não achas curioso como o nosso sentido animalesco desponta quando é mais preciso?

Levantei-me, acendi mais um cigarro e soltei uma serena gargalhada.

- Estou eu aqui a falar com um morto.
- Devo ter perdido o juizo.

Afastei-me do local onde tinha abandonado o segundo cadáver, a segunda vítima das minhas mãos. No mesmo local onde tinha colocado o primeiro, e onde outros se iriam seguir. Primeiro foi o senhor padre, que me mostrou o que era o inferno enquanto frequentava a casa da minha mãe, durante quinze anos. Matei-o como disse, por sobrevivência, por medo. Não por medo dele, não havia mais nada que ele pudesse fazer que eu viesse a temer. Foi por medo de mim próprio, da minha loucura que nasceu de uma jovial amargura perante a vida. Matei-o para me salvar de uma loucura obrigatória que me consumia o corpo. Tive de o matar.
O segundo corpo, foi com quem tive esta pequena conversa. Foi o meu pai biológico, que depois de abandonar a minha mãe a uma vida de miséria e sofrimento, voltou para a fazer de escrava. A mim não me podia tocar. Já não vivia naquela casa, já tinha a minha vida, e era temido por toda a gente. O que fiz foi pela minha mãe. Para a salvar de mais anos de sofrimento até ao fim da sua vida. Foi para a salvar da sua loucura, aquela que eu também tinha sentido anos antes.

1 comentário:

Luís disse...

Gosto bastante desta escrita, muito explícita e pujante. É realmente um lado mais nefasto da tua personalidade. Até agora só tens escrito tu, espero também pela contribuição da autora.