26.11.08

Aquilo que invade os homens



..."Era o silêncio. A terra esperava passos. O sol esperava olhares para iluminar. O tempo, julho, existia na distância entre os objectos suspensos. Nós assistíamos à espera do mundo. A terra sabia. O sol sabia. O tempo sabia. Nós sabíamos. Os homens não sabiam. Ele e ela não sabiam.
Ele e ela caminhavam na rua. Pensavam em qualquer coisa que não era nem a terra, nem o sol, nem julho. A rua ficou deserta quando se aproximaram. Esqueceram aquilo em que pensavam. E o lugar das ideias que tinham ficou vazio de tudo menos daquele instante igual, a divisão de um instante, um instante espetado dentro de um instante, o mesmo ponto de tempo em que olharam um para o outro. Dentro daquele momento, como dentro de toda a eternidade, aquele foi um ponto de tempo feito de terra e de sol e de julho. E o tamanho da terra entrou pelos seus passos. E o sol entrou pelos seus olhares. E o tempo começou a atravessar-lhes a pele. Nós, dentro dos homens, dentro dele e dela, assistimos à progressão lenta da terra, do sol e do tempo nos seus corpos. Devagar, ele sentia que a imagem do rosto dela era como a linha que, devagar, desenha os montes de encontro ao céu na hora em que a última luz é o contorno das montanhas. Ela, devagar, sentia que a imagem do rosto dele era como uma montanha, o corpo gigante e seguro de uma montanha, desenhado de encontro ao céu pela última luz. Durante um momento de terra, de sol e de julho, ele e ela sentiram que eram tocados por qualquer coisa grandiosa. E cada um levou esse instante dentro de si. E as ruas por onde passaram eram desertas para acolhê-los. A terra, o sol e o tempo começavam lentamente a invadi-los. Tinham entrado para sempre nos seus corpos e progrediam em direcção ao lugar mais íntimo, aquele onde guardavam a ternura e o desejo, e progrediam em direcção ao lugar onde nós estávamos, onde assistíamos e esperávamos por aquilo que sabíamos que ia acontecer.
Depois, houve tempo que eram horas misturadas. Nem ele, nem ela conseguiam distinguir as horas que passaram deitados na cama; sozinhos, longe um do outro, deitados, a ver dúvidas que eram angústias esculpidas no tecto; ou as horas infinitas que passaram a olhar pela janela, e a ver, e a sentir que a distância dos campos lhes entrava pela ponta dos dedos. Ele e ela tinham olhos que brilhavam. Ele e ela olhavam através dos vidros limpos da janela e, sozinhos, longe um do outro, sentiam que as árvores da paisagem, as suas raízes espetadas na terra, os seus ramos abertos ao céu, lhes invadiam o corpo e eram como sangue. Na distância de tudo o que viam das suas janelas, viam o rosto um do outro no momento em que o mundo começou lentamente a invadi-los."

José Luis Peixoto
Antídoto

Sem comentários: