29.11.08

Normalidade absurda.

Prostrada no fundo das escadas, com as pernas abertas, a roupa rasgada, o rosto coberto mas de choro aberto, com um soluçar infernal, símbolo além da dor, uma demonstração de frustração.
Desci mais dois degraus, para espreitar melhor.
Começava a ser um cenário comum. A mulher jogada num canto, com o batom borrado a atravessar o rosto, lágrimas dramáticas de um rimel cuidado, roupa rasgada como se tivesse sido possuída por um vendaval, possivelmente com os mesmos hematomas de sempre nos braços, nas costas, nas coxas.
Tudo indicava que tinha sido violada.
No meio de tão dantesco quadro, no meio de tão confuso drama, era assim que via a mulher do meu irmão.
De repente começou-se a rir, um riso descontrolado, com laivos de loucura. Não. Não eram laivos, era loucura pura, mas sem raiva, era um riso desequilibrado, mas pejado de prazer. Limpou o sangue que tinha no lábio, levantou-se e piscou-me o olho.
Fiquei mais descansado. Pode parecer estranho, mas naquele momento senti a normalidade.
Desde que o meu irmão descobriu que não poderia ter filhos por falha da sua natureza, ganhou um vício pelo sexo violento, tal e qual um caso de violação caseira, entre marido e mulher. E julgo que isso a excita. Ele descarrega a sua raiva e o sentimento de culpa, para ela funciona como uma espécie de penitência e um deleite sexual.
No fundo são um casal feliz julgo eu.
Fui-me vestir e fazer tempo enquanto não me chamavam para jantar. Depois de dois meses nesta casa, começo a ficar familiarizado como as coisas funcionam.

26.11.08

Aquilo que invade os homens



..."Era o silêncio. A terra esperava passos. O sol esperava olhares para iluminar. O tempo, julho, existia na distância entre os objectos suspensos. Nós assistíamos à espera do mundo. A terra sabia. O sol sabia. O tempo sabia. Nós sabíamos. Os homens não sabiam. Ele e ela não sabiam.
Ele e ela caminhavam na rua. Pensavam em qualquer coisa que não era nem a terra, nem o sol, nem julho. A rua ficou deserta quando se aproximaram. Esqueceram aquilo em que pensavam. E o lugar das ideias que tinham ficou vazio de tudo menos daquele instante igual, a divisão de um instante, um instante espetado dentro de um instante, o mesmo ponto de tempo em que olharam um para o outro. Dentro daquele momento, como dentro de toda a eternidade, aquele foi um ponto de tempo feito de terra e de sol e de julho. E o tamanho da terra entrou pelos seus passos. E o sol entrou pelos seus olhares. E o tempo começou a atravessar-lhes a pele. Nós, dentro dos homens, dentro dele e dela, assistimos à progressão lenta da terra, do sol e do tempo nos seus corpos. Devagar, ele sentia que a imagem do rosto dela era como a linha que, devagar, desenha os montes de encontro ao céu na hora em que a última luz é o contorno das montanhas. Ela, devagar, sentia que a imagem do rosto dele era como uma montanha, o corpo gigante e seguro de uma montanha, desenhado de encontro ao céu pela última luz. Durante um momento de terra, de sol e de julho, ele e ela sentiram que eram tocados por qualquer coisa grandiosa. E cada um levou esse instante dentro de si. E as ruas por onde passaram eram desertas para acolhê-los. A terra, o sol e o tempo começavam lentamente a invadi-los. Tinham entrado para sempre nos seus corpos e progrediam em direcção ao lugar mais íntimo, aquele onde guardavam a ternura e o desejo, e progrediam em direcção ao lugar onde nós estávamos, onde assistíamos e esperávamos por aquilo que sabíamos que ia acontecer.
Depois, houve tempo que eram horas misturadas. Nem ele, nem ela conseguiam distinguir as horas que passaram deitados na cama; sozinhos, longe um do outro, deitados, a ver dúvidas que eram angústias esculpidas no tecto; ou as horas infinitas que passaram a olhar pela janela, e a ver, e a sentir que a distância dos campos lhes entrava pela ponta dos dedos. Ele e ela tinham olhos que brilhavam. Ele e ela olhavam através dos vidros limpos da janela e, sozinhos, longe um do outro, sentiam que as árvores da paisagem, as suas raízes espetadas na terra, os seus ramos abertos ao céu, lhes invadiam o corpo e eram como sangue. Na distância de tudo o que viam das suas janelas, viam o rosto um do outro no momento em que o mundo começou lentamente a invadi-los."

José Luis Peixoto
Antídoto

25.11.08

O prazer está mesmo ali ao lado.

Acendo um cigarro e apago a luz da sala. Carrego play no comando do gira discos, já sentado na poltrona favorita, e com um copo de whiskey na mão.
Fico quieto a ouvir uma ou duas músicas do Leonard Cohen, e a sentir os sabores e cheiros que se misturam naquela sala.
De repente oiço gemidos, pancadas surdas na parede, madeira a chiar, gritos, estalos ocos na carne de alguém.
Desliguei a música e fiquei a ouvi-los a punir os meus sentidos com a noção de sexo animalesco, mais um sabor adicionado à sala.
Sorri, apaguei o cigarro e dirigi-me à cozinha. Tirei duas garrafas de champanhe, peguei nas chaves de casa e uma caixa de preservativos.
Dei quatro ou cinco passos, bati à campainha, e com o descaramento de um boémio levei da minha sala todos os pensamentos para o quarto dos meus sexualmente activos vizinhos.
Assim se passou mais uma noite, nunca sozinho, quando não se quer estar sozinho.

Histórias de sabedoria dos Poetas Malditos.

I sat in the same bar for 7 years, from 5 a.m.
(the day bartender let me in 2 hours early)
to 2 a.m.

sometimes I didn't even remember going back
to my room

it were as if I were sitting on the barstool
forever

I had no money but the drinks kept
arriving
to them I wasn't the bar clown
but the bar fool
but at times a fool will find a greater
fool to
admire him,
and,
it was a crowded
place

actually, I had a viewpoint: I was waiting for
something extraordinary to
happen

but as the years wasted on
nothing ever did unless I
caused it:

broken bar mirrors, a fight with a 7 foot
giant, a dalliance with a lesbian, many things
like the ability to call a spade a spade and to
settle arguments that I did not
begin and etc. and etc. and etc.

one day I just upped and left the
place

like that

and I began to drink alone and I found the company
quite all right

then, as if the gods were bored with my peace at
heart, knocks began upon my door: ladies
the gods had sent the ladies to the
fool

and the ladies arrived one at a time and when it ended with
one
the gods immediately--without allowing me any respite--sent
another

and each began as a flash of miracle--even the bed--and the
good ended up
bad

my fault, of course, yes, that's what they told
me

but I remembered the 7 years in the bar, I hardly ever bedded
down with anybody

the gods just won't let a man drink alone, they are jealous of
his simple strength and salvation, they will send the lady
knocking upon that door
I remember all those cheap hotels, it were as if the women
were one: the delicate little rap on the wood and then:
"oh, I heard you playing that music on your radio...we're
neighbors, I'm down at 603 but I've never even seen you in
the hall..."

"come on in..."

and there go your balls and your sanctity, Men's Liberation,
they say, is not needed
and then you remember the bar
when you walked up behind the 7 foot giant and knocked his
cowboy hat off his head, yelling:
"I'll bet you sucked your mother's nipples until you were
12 years old!"

somebody in the bar saying: "hey, sir, forget it, he's a mental
case, he's an asshole, he doesn't know what he is
saying!"

"I know EXACTLY what I am saying and I'll say it again:
I'll bet you sucked..."

he won but you didn't die, not at all the way you died when the
gods arranged to get all those ladies knocking and you went for
the first flash of miracle

the other fight was more fair: he was slow, stupid and even a
little bit frightened and it went well for quite a good while,
just like with the ladies those gods
sent

the difference being, I thought I had a chance with the
ladies.

Charles Bukowski - Two kinds of hell